A Psicologia Junguiana frente ao Mito de Faetonte

Por Daniel Nunes em 21/05/2014

As imagens míticas são representações espontâneas provenientes da imaginação do homem, que descrevem em linguagem poética as experiências fundamentais do ser humano. Os deuses gregos, mesmo que amorais, trazes paradoxalmente profundas verdades morais e descrevem muitos ângulos e nuanças que operam na psique humana. São símbolos da Natureza Humana, nosso própria natureza com sua profunda ambivalência de corpo e alma e seus impulsos mutuamente contraditórios com relação à autorrealização.
A Psicoterapia Junguiana busca em cada mito reconhecer este nuance da experiência humana e oferecer ao analisando uma compreensão maior de algo que esteja vivendo em dado momento de sua vida.

 

Faetonte era filho de Apolo e da ninfa Climene. Certo dia, um companheiro de escola do menino zombou da idéia de ser ele filho de um deus, e Faetonte, furioso e envergonhado, contou o ocorrido a sua mãe.
— Se sou, na verdade, de origem celeste — disse — dá-me, minha mãe, uma prova disso, que me assegure o direito de reclamar a honra. Climene estendeu os braços para o céu, exclamando:
— Tomo por testemunha o Sol que nos olha, de que te disse a verdade. Se menti, seja esta a última vez que contemplo esta luz. Não é preciso muito trabalho para tu mesmo ires averiguar; a terra onde mora o Sol fica próxima da nossa. Vai perguntar-lhe se te reconhece como filho.
Faetonte ouviu deleitado estas palavras. Viajou para a índia, que fica junto das regiões do nascente, e cheio de esperança e de orgulho aproximou-se do destino, de onde seu pai começa o curso.
O palácio do Sol erguia-se muito alto, sobre colunas, reluzente de ouro e de pedras preciosas […] Dominando tudo, estava esculpida a imagem do glorioso céu, e, nas portas de prata, os signos do zodíaco, seis de cada lado.
O filho de Climene subiu a escadaria de acesso e entrou no palácio de seu pai. Aproximou-se, mas parou a distância, pois a luz era mais forte do que podia suportar. Febo, ostentando uma veste de púrpura, achava-se sentado num trono, onde brilhavam diamantes. […]
— O luz do mundo ilimitado, Febo, meu pai, se me permites dar-te este nome, oferece-me uma prova, peço-te, pela qual possa ser reconhecido como teu filho.
Calou-se. O pai, pondo de lado os raios que brilhavam em torno da cabeça, fê-lo aproximar-se e disse-lhe, abraçando-o:
— Meu filho, mereces não ser repudiado e confirmo o que tua mãe te disse. Para pôr fim às tuas dúvidas, pede o que quiseres, e tua vontade será satisfeita. […]
Faetonte imediatamente pediu para ter licença de dirigir por um dia o carro do sol. O pai arrependeu-se da promessa; três e quatro vezes, sacudiu a radiosa cabeça, advertindo:
— Falei levianamente. Este é o único pedido que deveria negar-te. Peço-te que o retires. Não é uma tarefa fácil, meu Faetonte, nem adequada à tua juventude e à tua força. Teu destino é mortal e pedes o que está além da capacidade de um mortal. Em tua ignorância, aspiras fazer o que nem os próprios deuses fazem. Ninguém, a não ser eu mesmo, pode guiar o flamejante carro do dia. Nem mesmo Júpiter, cujo terrível braço direito lança os raios. O início do caminho é uma ladeira, tão íngreme que os cavalos às primeiras horas da manhã mal conseguem subir; o meio fica tão alto no céu que eu mesmo mal consigo, sem susto, olhar para baixo e contemplar a terra e o mar estendidos aos seus pés. A última parte é uma descida rápida, e exige o maior cuidado ao guiar o carro. […] Tenho de estar sempre em guarda, para que aquele movimento, que tudo arrasta, não me arraste também. […] o caminho corre no meio de monstros aterradores. Passas junto aos chifres do Touro, em frente do Sagitário e perto das fauces do Leão e onde o Escorpião estende seus ferrões numa direção e o Caranguejo na outra. E verás que não é fácil guiar esses cavalos, com seus peitos repletos do fogo que sai por suas bocas e narinas. Eu mesmo mal os posso governar, quando eles se mostram indóceis e resistem às rédeas. Cuidado, meu filho, para que eu não seja o doador de um presente fatal; desiste de teu pedido enquanto é tempo. Queres uma prova de que és fruto de meu sangue? Dou-te uma prova em meus temores por ti. Olha meu rosto. Se pudesses penetrar dentro de meu peito, verias ali toda a ansiedade paterna. Procura pelo mundo e escolhe o que a terra ou o mar contenham de mais precioso: pede sem medo de recusa. Apenas neste pedido imploro-te que não insistas. Não é a honra, mas a destruição que procuras. […]
Calou-se; mas o jovem rejeitou todos os seus conselhos e manteve o pedido. Assim, tendo resistido tanto quanto pôde, Febo afinal encaminhou-se para onde estava o soberbo carro. […] Enquanto o ousado jovem olhava com admiração, Aurora abriu as portas de púrpura do nascente e mostrou o caminho juncado de rosas. As estrelas retiraram-se, conduzidas pela Estrela d’Alva, que, última de todas, retirou-se também. […] Então, o pai umedeceu o rosto do filho com um ungüento poderoso, tornando-o capaz de suportar o calor da chama. Colocou os raios em sua cabeça e, com um suspiro agoureiro, disse:
— Se, pelo menos nisso, meu filho, vais seguir meus conselhos […] Conserva o limite da zona mediana, evitando igualmente o norte e o sul. Verás as marcas das rodas e elas te servirão de guia. E, para que o Céu e a Terra possam receber cada um a quantidade devida de calor, não subas demais, senão incendiarás as moradas celestes, nem andes muito baixo, para que não ateies fogo à Terra […] A noite está saindo das portas ocidentais e não podemos atrasar por mais tempo. […]
Enquanto isto, os cavalos enchiam o ar com seus relinchos e o ruído de sua respiração ardente, e escavavam o chão, com impaciência. […] Investiram e fenderam as primeiras nuvens e passaram à frente das brisas matinais que haviam partido também do nascente. Os cavalos logo perceberam que a carga que transportavam era mais leve que a de costume; e como um navio sem lastro é sacudido de um lado para o outro no mar, assim o carro, sem seu peso costumeiro, era sacudido como se estivesse vazio. Os corcéis avançaram,deixando o caminho sempre trilhado. Faetonte está assustado e não sabe como guiar os animais; e nem que soubesse teria a força necessária. Então, pela primeira vez, a Ursa Maior e a Menor foram abrasadas de calor e teriam querido, se tal fosse possível, mergulhar na água […]
Quando o desventurado Faetonte baixou os olhos para a terra, que agora se desdobrava em grande extensão embaixo dele, empalideceu e seus joelhos bateram um contra o outro de pavor. A despeito do clarão que o rodeava, seus olhos turvaram-se. Desejou jamais ter tocado os cavalos paternos, jamais ter sabido sua origem, jamais ter insistido em seu pedido. […] Perdera o domínio de si mesmo e não sabia o que fazer — se encurtar as rédeas ou se afrouxá-las […] Aqui, Escorpião estendia seus dois grandes braços, com a cauda e as garras recurvadas estendendo-se por dois signos do zodíaco. Quando o jovem o viu, ressumando veneno e ameaçando com os ferrões, sua coragem fraquejou e as rédeas lhe caíram das mãos. Sentindo-as soltas em suas costas, os cavalos avançaram e, sem restrições, penetraram em regiões desconhecidas do céu, entre as estrelas, arrastando o carro em lugares sem estrada, […] As nuvens começaram a esfumaçar e os cumes das montanhas a se incendiar; os campos tornaram-se ressequidos de calor, as plantas murcharam […].
Faetonte contemplou o mundo em chamas e sentiu o calor intolerável. O ar que respirava era como o ar de uma fornalha, cheio de cinza, e a fumaça estava negra como breu. Avançou sem saber para onde. […] O Nilo fugiu e escondeu suas cabeceiras no deserto, onde ainda continuam escondidas. No ponto em que costumava descarregar no mar suas águas, através de sete bocas, apenas restaram sete canais secos. A terra ressequida criou fendas, através das quais a luz penetrou no Tártaro, amedrontando o rei das trevas e a rainha sua esposa. O mar evaporou-se. Onde antes era água, formou-se uma planície seca; e as montanhas que jazem por baixo das ondas ergueram a cabeça e tornaram-se ilhas. […] A terra, […], protegendo o rosto com as mãos, olhou para o céu e, com voz enrouquecida, dirigiu-se a Júpiter:
— Ó pai dos deuses, se mereci este tratamento e se é teu desejo que eu pereça pelo fogo, por que poupas teus raios? Deixa-me, pelo menos, cair por tuas mãos. E esta a recompensa de minha fertilidade, de meus obedientes serviços? […] Salva o que ainda nos resta da chama devoradora. Pensa em nossa salvação, neste momento fatal! […]
Então, Júpiter onipotente, invocando o testemunho de todos os deuses, inclusive daquele que emprestara o carro, e mostrando-lhes que tudo estaria perdido, a não ser que fosse aplicado um remédio urgente, subiu à torre altaneira de onde espalha as nuvens sobre a terra e arremessa os recurvados raios. Desta vez, porém, não havia uma só nuvem que pudesse ser usada para proteção da terra, nem chuva que pudesse ser lançada. Júpiter trovejou e, erguendo um raio incandescente na mão direita, lançou-o contra o condutor do carro e arrancou-o, ao mesmo tempo, do seu lugar e da existência! Faetonte, com os cabelos em chama, caiu de cabeça para baixo, como uma estrela cadente que marca o céu com seu brilho enquanto cai, e Eridano, o grande rio, recebeu-o e refrescou seu corpo ardente.
As náiades italianas ergueram-lhe um túmulo e gravaram estas palavras sobre a pedra:

Aqui jaz Faetonte, que o paterno
Carro ousou dirigir, em vão. Contudo
Honrou-o a nobre audácia de tentá-lo

 

Uma tal história certamente nos remete a sentimentos de orgulho, ganância e ingenuidade. Faetonte, que era jovem, se sente humilhado por um questionamento de sua origem solar. Sua atitude de exigir de sua mãe uma prova desta origem já mostra sua fragilidade, pois deseja com isso fazer valer sua “honra” perante o colega. É este o sentimento que marca o início deste mito – o orgulho. Movido pelo orgulho, Faetonte parte em busca de seu Pai, Phebo (Apolo) para ouvir dele a verdade sobre sua origem. O destino era a Índia, que para a Grécia fica na direção ocidental, que representa o nascente. Ao chegar, o jovem constata a beleza e grandeza do palácio de seu Pai. Ao lhe fazer a pergunta, recebe a proposta de pedir o que quisesse, mas como estava movido por um sentimento que cega o homem, fez o pedido mais audacioso que um homem poderia fazer – conduzir o próprio Sol. Uma tarefa reservada apenas ao Deus-Sol.
O orgulho é um sentimento muito perigoso, pois ele altera a visão que temos de nós mesmos e do que nos cerca. Com este sentimento, estamos sujeitos a nos super estimar e ousarmos fazer coisas que estão bem acima de nossas capacidades.
Phebo avisa seu filho de perigo. O Deus-Sol simboliza nossa consciência, ou melhor, o potencial supremo de nossa consciência. Mas independente do grau de consciência do homem, há sempre momentos em que somos, de certa forma, avisados do destino sombrio de nossas escolhas. Quanto mais consciência tem o indivíduo, mais acertadas são suas escolhas. Mas também, uma pessoa com uma maior clareza de consciência também é capaz de ouvir melhor os avisos do caminho. Esses avisos podem vir de diversas formas, mas uma regra é importante de ser compreendida… eles geralmente vêm pela sincronicidade. Um sonho, uma frase pescada no ar, uma placa de propaganda, entre muitas outras coisas.. há uma inteligência regente que permite ao homem o acesso ao transcendente através de uma habilidade tão real e importante quanto é a visão, o movimento. Tal habilidade é chamada Intuição. Não devemos ficar procurando esses sinais com uma atitude ansiosa ou racional. Elas estão aí o tempo todo, mas são acessadas em uma qualidade de tempo e estado de consciência que certamente não fazem parte da dimensão racional e linear da mente humana. Trata-se de um estado lúdico, muito mais ligado ao coração do que á mente.
Mas como Faetonte poderia reconhecer sua filiação se estava com o coração absolutamente fechado pelo orgulho. Ele sequer imaginou que seu pai, Phebo, um Deus-Sol, não poderia mentir, dada sua natureza solar. E assim lançou-se inocentemente em uma jornada muito maior que sua humanidade, avisado pelos deuses que não haveria qualquer auxilio por parte desses.
Há um registro histórico de que Nabucodonosor, em um dado momento de seu reinado, teve um sonho no qual aparecia uma árvore que havia crescido até tocar o céu, com uma copa frondosa e muitos animais que viviam nela. No mesmo sonho os animais são afastados e é decretado que a árvore deve ser cortada em sua base, restando apenas um toco e suas raízes. Esse sonho profetizou o fim de seu império, devido à ganância de Nabucodonosor. Mas como ele não soube dar ouvidos a um tal sonho, ocorreu o que o destino lhe anunciara. E aqui fica a pergunta: Seremos nós capazes de mudar nosso destino?
Há uma simbologia para carros e veículos em geral que diz como estamos dirigindo nossas vidas (quem sonhar com um carro pode examinar como o carro aparece no sonho e ver se á alguma relação com a própria vida). Faetonte quis dirigir um carro que não apenas não era o dele, mas que só poderia ser conduzido por um ser supremo. Isso pode estar simbolizando que há certas coisas em nossas vidas que não são da alçada do homem comum. Penso em cientistas que manipulam geneticamente animais sem um mínimo de critério moral, apenas para poder elevar seu nome diante de uma sociedade que chega hoje a extremos patológicos de valores sociais deturpados. Penso também em como nossa sociedade quer que sejamos impecáveis e eficientes em nossas atuações, fazendo pessoas trabalharem com metas desumanas, chegando essas pessoas a colapsos nervosos. Mas como um terapeuta junguiano, tenho que voltar à vida do indivíduo comum, como a maioria de nós, e perguntar, num caso como o de Faetonte, aonde estamos sendo ousados demais? Em que aspecto de minha vida o orgulho pode estar me conduzindo a ultrapassar as fronteiras de minha humanidade?
Serei eu capaz de descer do Carro-Sol e saber aceitar os aspectos mais mundanos de minha existência?

Palavras-chave: psicologia junguiana, Mitologia
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